Histórias de Moradores de Petrolina

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar histórias e depoimentos dos Moradores da cidade de Petrolina.

História da Moradora: Patrícia Araújo
Local: Pernambuco
Publicado em: 08/12/2014

História: Simplesmente Patrícia


Sinopse:

Patrícia é uma promoter de festas para travestis que contou sua história ao Museu da Pessoa. Nascida Adilson Antônio, Patrícia recorda sua infância na cidade de Petrolina, em Pernambuco. Fala sobre a descoberta da sexualidade e do bullying que sofria na escola por causa de seus trejeitos femininos. Mudou-se para Juazeiro, onde foi morar com amigos e trabalhar em salão de cabelereiro. Lembra a mudança para Salvador, o primeiro casamento e o início da vida de prostituição. Ao mudar para São Paulo encanta-se com a grande metrópole, onde continua a se prostituir. Recorda as duas vezes que morou na Espanha e como começou a produzir festas para travestis.

História

Meu nome Adilson Antonio Araújo (Patrícia Araújo). Eu nasci em Paulo Afonso, Bahia, em 3 de novembro de 1978. Mas como naquela época as famílias tinham que sair de uma cidade menor para outra maior pra registrar, o meu registro de nascimento foi feito em Petrolina, Pernambuco. Mas me considero baiana registrada em Pernambuco. A minha mãe é Maria de Fátima Araújo Lima e pai não conheço. A minha mãe já foi caixa de supermercado. Quando eu nasci ela trabalhava em um mercado. A história que ela me conta é que ela não chegou a casar, engravidou namorando e estavam prestes a casar. Mas com sete meses de grávida ele abandonou-a e ela voltou pra casa dos meus avós, me teve, continuou trabalhando e eu cresci dentro da casa dos meus avós.

A minha avó chama-se Maria do Socorro Araújo Lima, é a pessoa mais doce do mundo, e o meu avô Sandoval Silva de Araújo. Hoje, com a minha condição social de travesti, a gente se afastou um pouco, mas por telefone a gente sente aquele amor. Com três anos de idade a gente mudou para Petrolina, então não tenho lembranças. A parte da Bahia que eu lembro já é depois de adulta, a parte de criança não lembro. O meu avô trabalhou na construção da barragem de Sobradinho, aí ele trabalhava em Sobradinho, morava em Paulo Afonso. Acabou a construção, ele saiu de lá e começou a entrar no Pernambuco de novo, dali ele já não saiu mais. Petrolina é a cidade que eles moram atualmente.

Eu brincava basicamente com os vizinhos, então joguei futebol, soltei pipa, joguei peão, brinquei de queimada, brinquei de polícia e ladrão. Brinquei de tudo que uma criança poderia brincar. Eu tive uma infância muito feliz, então não posso reclamar de nada. Quando eu comecei a estudar na Escola Professora Osa Santana de Carvalho, é uma escola bem grande. É em Petrolina mesmo. Era bem legal, eu me divertia. Só não era divertido quando o pessoal pegava e começava a fazer chacota da minha pessoa porque na época eu já tinha os trejeitos femininos, então, ficava meio que na escola com aquele burburinho, é ou não é, é ou não é. Então eu brigava muito na escola, eu tinha muito disso, eu brigava muito. Porque na época como eu não entendia nada eu não aceitava, então eu brigava, eu falava: “Não, não é isso não. Vocês estão querendo zoar com a minha cara”, eu brigava muito. Eu escutava muito “bichinha, viadinho, gayzinho, mulherzinha”, me colocavam muito os apelidos, então eu não entendia. Mesmo com dez, 11, 12 anos eu já tinha esse jeito afeminado de ser, então os meninos viam isso na escola, então por não ter o costume de um menino ser tão afeminado, aí eles começavam a colocar apelidos, a zoar, essas coisas. Mas eu não tenho mágoa, não tenho rancor dessa parte da minha vida, pra mim é normal. É questão que eles não tinham esse costume de ver, até eles aprenderem e verem a realidade, aí é outra história.

Eu era bem jovem e eu não tinha noção de nada, eu não sabia nem o que era. Eu sabia o que era gay, mas eu não sabia que eu era gay, então. Mas quando minha mãe me perguntou foi um choque porque eu percebi que até a minha mãe via alguma coisa que eu não estava vendo. Porque eu brincava com as meninas e eu achava normal, pra mim era normal, eu estava brincando, eu era uma criança, adolescente, normal. Conversa normal, tudo normal. Mas quando ela me perguntou veio um estalo. Tem alguma coisa acontecendo comigo, alguma coisa que eu não estou vendo. Porque a minha avó falava pra minha mãe assim: “Você tem que falar com ele, porque não está certo isso, olha esse menino, só quer viver com menina”, a partir desse momento foi que eu acordei pra enxergar, foi quando eu comecei a descobrir, digamos, a atração pelo sexo masculino. Foi ali que eu descobri que eu tinha uma atração por homem e não por mulher, foi assim.

No segundo grau você já é adolescente, você já tem noção, você assiste a uma televisão e já entende melhor, você já vê uma pessoa conversando alguma coisa, você entende melhor. Então nesse segundo grau eu já sabia que eu era gay, porém eu nunca assumi pra minha família porque era um problema que eu tinha com a minha família de assumir. E nesse segundo grau eu conheci outros gays, me relacionei com homens, fiz várias outras amizades, conheci várias outras pessoas. Foi quando eu me descobri gay: “Ah, eu sou gay”, pronto, não tem mais jeito. Tem uma prima minha que era sócia numa escolinha, eu fui trabalhar na escolinha e eu acabei dando aula. Nesse período, eu fui morar com um amigo meu, Betinho Souza, ele tinha uma agência de modelo na época. Ele acolhia muita gente, muito gay dentro da casa dele. Eu fui pra lá, todo final de semana eu ia pra lá, a gente dividia comida, comia todo mundo, ia pra festas, zoava, voltava, namorava, brincava, beijava na boca, então era bem divertido nessa época. De lá eu arrumei um outro emprego, saí da escolinha, mas não deu muito certo.

Eu sempre digo que veio naturalmente o desejo de me vestir de mulher. Então naquela época eu disse: “Não, eu vou me vestir de mulher”. Comecei a me vestir e quando eu me dei por conta eu já não tinha nenhuma peça masculina no meu guarda-roupa, só peças femininas. E o cabelo já estava grande, eu já não atendia mais pelo nome de Adilson, já era Patrícia. Eu sempre gostei do nome Patrícia. Me lembra patricinha, meninas metidinhas, loiras, bonitas, magras, ricas, então eu gosto do nome porque me traz boas lembranças. Na época não era Patrícia Araújo, eu não usava o Araújo. Eu gostava muito, e gosto muito, da Narcisa Tamborindeguy, então achava ela uma mulher muito descolada, muito pra frente do seu tempo, tudo, então eu usava Patrícia Tamborindeguy. Mas aí com o passar do tempo já não gostava mais de ter o sobrenome de ninguém e passei a usar o meu mesmo.

Mas foi nessa época, eu fui morar com esse pessoal e de tanto conviver com o mundo feminino delas, quando eu vi por mim eu já era travesti, mas não foi algo que eu disse: “Eu vou ser”, aconteceu. Naturalmente, como acordar, escovar os dentes, comer, qualquer coisa. Aconteceu. Quando eu vi eu já era a Patrícia, então nessa época eu não tinha mais nem como esconder, a minha mãe já sabia. Mas minha avó, meu avô, meus tios, ninguém sabia. Porque quando eu ia pra casa deles, que era em Petrolina, eu já botava uma calça, uma camiseta, como eu só tinha seio de hormônio dava para esconder ainda. Prendia o cabelo e ia. Mas eles não sabiam de nada não, mas foi lá em Juazeiro que eu mudei e me transformei mesmo.

O primeiro amor foi Ed. Ele já morava em Salvador, ele é baiano. Eu sou aquela baiana transitória, ele não, ele é baiano de lá mesmo. Então a gente meio que se conheceu eu trabalhando. Eu acho que teve uma briga um dia e ele me ajudou nessa briga, eu briguei com outra travesti, e ele acabou me ajudando. Nisso a gente foi se conhecendo, ficou, namorou uma semana e depois de uma semana já estava morando junto. Ficamos um ano e dois meses mais ou menos. Foi uma relação boa só que terminou de uma forma um pouco chata. O que ninguém gosta: ser traída. Terminou. Eu fiquei uns 30 dias em casa sem sair. Não lembro se mais ou se menos, mas eu lembro que eu fiquei um bom tempo em casa só chorando. Depois eu levantei a cabeça, tomei um banho, fui pro meu salão trabalhar e segui minha vida.

Continuei trabalhando com programa. O Ed também trabalhava com programa, ninguém podia cobrar nada de ninguém, os dois trabalhavam, ele trabalhava pra lá, eu pra cá, então havia essa concordância, cada um ganha o seu da forma que lhe convém, mas era bem tranquilo. Eu sempre tive esse espírito de empreendedorismo, então, diferente das outras travestis da minha época eu guardava dinheiro. E ele guardava o dele junto com o meu. No meu primeiro salão ele praticamente pagou todo, minha mãe deu uma parte e ele deu outra. E aí eu entrei em sociedade com um outro amigo meu, foi onde a gente abriu um salão.

Eu não tinha uma percepção do que iria ser lá na frente, então pra mim tudo era novidade. Você ganha dinheiro fácil, fazendo uma coisa que é fácil de se fazer: sexo, mas você não tem a percepção que aquilo tudo tem um risco, tem um perigo, não te dá uma segurança, não tem um futuro. Porque eu fui a primeira vez pra Salvador, casei, voltei. Aí me separei, passei um ano em Juazeiro de novo, depois voltei pra Salvador de novo e já casei de novo. Mas a percepção mudou quando eu cheguei em São Paulo, há uns 14 anos, tudo isso mudou quando eu cheguei aqui. Porque eu vi a grandiosidade do mundo. Até então eu conhecia Petrolina, Juazeiro, Salvador, Recife, não conhecia um mundo tão grande assim. Então, quando eu cheguei aqui eu ainda fui trabalhar com programa, viajei pra Europa, fiquei dois anos. Quando eu voltei da Europa eu já não queria mais, que já não era mais o que eu queria, eu queria outras coisas, eu queria alçar outros voos, eu queria uma vida melhor, uma vida que minha mãe não se preocupasse tanto, uma vida que as pessoas não me olhassem torto. Porque por mais que a gente brigue, lute e diga: “É profissional do sexo, tem que ser respeitada”, a sociedade já não olha pra travesti com bons olhos, quando ela faz programa aquele preconceito dobra.

Quando você começa a trabalhar com prostituição você já vê as outras que já têm prótese, já têm bunda, já têm cabelo, então você começa a querer mudar. A primeira mudança é a hormonização, você começa a tomar hormônio feminino para adquirir formas femininas. Então você não admite mais pelo no seu rosto, você quer ter um cabelo grande, unha grande, você quer ter formas femininas, tudo isso requer dinheiro e cirurgias. Então você vai mexer no seu corpo, você mexe no seu bumbum, você mexe no seu seio, você mexe no seu rosto. Eu comecei com os hormônios, depois eu parti pro bumbum, depois pra prótese, depois pro rosto. Tudo um atrás do outro. Mas eu fiz várias intervenções pra mudar. Não mudei muito, mas mudei alguma coisa.

Eu vim pra São Paulo, eu fiquei aqui um ano. Nesse um ano eu me separei, aí já decidi, minha amiga disse: “Ah, vamos viajar” “Pra onde?” “Pra Europa, vamos pra Espanha, vamos trabalhar lá, ganhar um dinheiro pra tu fazer alguma coisa na sua vida”. Ela foi e com 30 dias depois eu fui. Nisso, nesse intervalo, minha mãe já tinha vindo em São Paulo, voltado, veio e já não voltou mais. Aí durante o tempo que eu viajei, eu fiquei um ano fora, e ela ficou um ano aqui. Eu voltei, fiquei aqui um ano.

A primeira vez eu fui vestida de homem. Eu já tinha prótese, deixei a sobrancelha engrossar, uns poucos pelos que eu tinha no rosto eu deixei crescer e fui, vestida de homem. Eu digo: “Meu Deus, que loucura!” Fui vestida em sete calcinhas (risos), de boné. Nunca tinha ido na Espanha e consegui falar com o taxista pra ele me deixar onde eu queria sem problema nenhum. Aí hoje em dia, assim, as experiências lá de fora, você conhecer outras pessoas, outra cultura, vários países. Eu conheci a Espanha, Alemanha, França, Itália, República Tcheca, Portugal, eu rodei muito, eu conheci muita gente, vi muita coisa, conheci vários pontos turísticos. Eu não fui lá só pra trabalhar, eu conheço, eu posso falar de várias coisas, eu falo o idioma castelhano fluentemente, eu entendo, compreendo, eles me entendem, trouxe várias experiências boas de lá. Não tenho o que falar de lá, foi muito bom, muito gratificante. Não faria tudo de novo porque é uma loucura, é uma loucura, mas na época loucura pra mim era maravilhoso. Mas foi muito interessante, muito bom e muito gratificante, uma coisa muito legal na minha vida, foi ter viajado pra fora.

Hoje eu promovo festas para travestis. A festa é Terça Trans. A única festa trans do Estado de São Paulo. E assim, pelo que eu sei, já teve uma que tentou fazer uma festa parecida com a minha no Rio de Janeiro, mas aí já mudaram o tema. Hoje em dia é a única festa voltada para o público de travesti e transexuais do Brasil, é a minha. Agora nesse mês de outubro faz exatamente quatro anos.

Há um ano e quatro meses, cinco meses eu conheci o Paulo assim, eu estava passando pelo ponto de ônibus e eu passei uma vez e vi aquele menino moreno, sentado. Ele é muito calmo, muito paciente; eu sou extremamente estressada, muito apressada. Então assim, são duas pessoas totalmente diferentes, mas que se entendem. A gente briga, a gente se abraça, é uma relação normal pra mim. No ano passado eu fui viajar pra Salvador e a gente namorava. Eu fiz um evento, a Terça Trans, e quando estou fechando tudo lá, aí a festa não tinha dado lucro nenhum, eu tinha tomado prejuízo e eu estava irritada nesse dia, já fechando com raiva porque não tinha ganhado nada, é um dia que eu estava estressadíssima e com raiva mesmo. Aí ele me chega com um buquê de flores desse tamanho assim, menina, e uma caixinha vermelha. Eu digo: “O que é isso?” “Aliança”, e botou a aliança. Eu abri a caixinha e disse bem assim: “Cadê a nota com seguro? Porque se isso daqui for daquelas de chiclete eu não quero”. Ele abriu a carteira, me mostrou: “Não precisa não, eu acredito em você”. Aí fui pra casa e no outro dia ele falou pra mim. Eu acordei com a aliança no dedo.

Eu sonho em um dia em que as pessoas critiquem menos e ajam mais. Eu vejo muita gente falando, falando, mas pouca gente fazendo. Eu sonho com um mundo em que ninguém me aponte como travesti e sim como Patrícia, simplesmente Patrícia. Eu sonho com um mundo em que eu não tenha que abrir o meu Facebook e ver um cara matando um gay, um vídeo, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Eu sonho com um mundo em que uma travesti não precise viver só na esquina de uma rua e ela possa trabalhar no supermercado, numa loja.

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